terça-feira, 9 de abril de 2013

Falta de água na Terra é preocupação presente e futura

É difícil acreditar que isso aconteça aqui, onde dois terços da superfície estão cobertos por imensos mares, rios, lagos e geleiras, sem considerar o estoque gigantesco de água subterrânea. No entanto, está acontecendo...
É verdade que apenas uma pequena parte do total é de água doce. Também é verdade que sua distribuição pela Terra é desigual. Mas estamos falando de um recurso em constante renovação, que já foi suficiente para atender às necessidades de todos os seres vivos do Planeta. O Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial da Água, divulgado em 2003 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), órgão responsável pelo Programa Avaliação da Água no Mundo (WWAP) afirma que, em 50 anos, entre 2 e 7 bilhões de pessoas não terão acesso à água de boa qualidade e em quantidade suficiente.
Mesmo tão grave, a ameaça pode ser resumida numa fórmula simples: gastamos mais do que temos disponível; poluímos dez vezes mais do que consumimos, e desperdiçamos uma quantidade incalculável da água que tratamos.
Existem, porém, outros elementos a serem acrescentados a esse quadro, uma vez que a água não é consumida apenas pelos seres humanos: é compartilhada com todos os outros seres vivos. Como a população humana, bilhões de exemplares das mais de 10 milhões de espécies existentes no Planeta também sofrerão os impactos da nossa poluição, do nosso excesso de consumo e do nosso desperdício. Mais: como outros bens naturais essenciais aos seres humanos, a oferta da água depende diretamente do estado de conservação dos ambientes naturais. Portanto, se os bilhões de seres vivos que compõem a diversidade dos ecossistemas naturais estão sujeitos à escassez, isso significa que suas funções ecológicas essenciais serão afetadas e há risco de colapso dos ecossistemas de água doce, comprometendo qualquer perspectiva de solução.
Identificar as causas da escassez de água no mundo é o primeiro passo para evitar tal desastre. Nas últimas décadas, duas grandes tendências dividem as discussões internacionais sobre o tema. A primeira, dominante nas esferas oficiais, atribui o problema ao mau uso dos recursos hídricos e à falta de modelos modernos de gerenciamento econômico para sua regulação. A outra, amparada da por grupos não-governamentais e acadêmicos, aponta a destruição da biodiversidade em escala global como a gênese da crise. As causas, na verdade, são complementares, e é da fusão dessas duas correntes — e das soluções para as quais elas apontam — que será construída uma saída para o futuro.
O fato é que o crescimento da demanda por água no planeta é quase exponencial: enquanto a população do Planeta dobrou, entre 1900 e 1997, o consumo de água cresceu mais de 10 vezes. Dados de 1940 apontam o consumo médio de água por pessoa de 400 m3/ano enquanto, em 1990, esse número já havia chegado a 800 m3/ano. Esse consumo médio inclui toda a água utilizada por atividades produtivas, além de saciar a sede da população humana.
Não bastasse o comprometimento dos ecossistemas de água doce pela forte pressão da demanda por água para abastecimento e produção, os rios também foram e continuam sendo usados para diluir resíduos provenientes de esgotos, lixo doméstico, efluentes industriais e insumos químicos da agricultura. Estima-se que cerca de 2 milhões de toneladas de lixo são jogadas diariamente em rios e lagos da Terra, e que 12 mil km3 de água estejam poluídos em todo o mundo. Se as taxas de poluição mantiverem o atual ritmo de crescimento, esse número saltará para 18 mil km3 de águas poluídas até 2050!
Medidas isoladas de saneamento, como expansão da oferta de água para abastecimento público, também aumentam a poluição dos rios. Luiz Lobo, no livro Em busca da universalização afirma que, para cada metro cúbico de água tratada consumida produz-se outro metro cúbico de água servida. Como a implantação dos serviços de coleta e tratamento dos esgotos não ocorre junto com a implantação da rede de água, a água servida antes contida localmente — em fossas sanitárias e afins — passa a ter como destino os cursos d'água mais próximos.
Para agravar ainda mais o quadro, do ponto de vista do mau uso e da falta de gerenciamento, um volume incalculável de água se perde nas tubulações, principalmente por causa de infiltrações e vazamentos. A Europa tem índices de perda em torno de 10%. Algumas localidades da Ásia, como Cingapura, perdem 6%. No Brasil, de acordo com um grupo de pesquisadores da Coordenação de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe-UFRJ), o índice de desperdício chega a 47%, ou seja, cerca de 6 bilhões de m3 de água tratada se perdem por ano!
Embora os números relacionados a consumo, desperdício e poluição sejam contundentes, é marcante, nessas abordagens, a ausência de referências claras à função dos diferentes elementos que integram o ciclo da água. A destruição dos ambientes naturais, por exemplo, raramente é associada à questão, embora as derrubadas dos últimos 20 anos somem milhões de hectares de florestas, em todo o Planeta (pelo menos 16 milhões de hectares de florestas perdidas por ano, segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação - FAO).
A destruição de florestas afeta o suprimento de água dos lençóis freáticos e reduz a oferta de água nas regiões desmatadas, com impactos diretos sobre os ecossistemas de água doce, como enchentes avassaladoras causadas pela degradação do solo; extinção de espécies (de peixes e outros seres aquáticos); aterramento de nascentes e de áreas alagadiças. Isso cria um círculo vicioso, afetando ainda mais o suprimento do lençol freático e reduzindo a vazão dos rios por assoreamento. As conseqüências da ruptura dos sistemas naturais de produção e de purificação da água ultrapassam os limites dos problemas de gerenciamento econômico. E por uma razão bem simples: ecossistemas degradados e espécies extintas não são reconstituídos pelo engenho humano responsável pela sua destruição.
Na esteira de problemas decorrentes da destruição dos ambientes naturais estão ainda os efeitos do aquecimento global. As mudanças climáticas provocadas pela emissão de gases na atmosfera já provocam alterações no ciclo anual de chuvas; aumentam os períodos e a intensidade do calor; prolongam secas e estão na origem de grandes tempestades e inundações. As conseqüências de todas essas mudanças sobre os ecossistemas de água doce aumentam — e muito — o risco de escassez.
Também a expansão predatória do uso dos bens da natureza encontra limites físicos concretos e gera novas categorias de escassez. E o aumento do valor desses recursos escassos pressiona a composição dos custos dos produtos que dele necessitam, a ponto de ameaçar a própria capacidade de reprodução do capital investido. Diante disso, surgem mecanismos para regulamentar o uso dos elementos escassos como forma de evitar uma crise maior.
Com a água aconteceu assim. O bem natural passou à categoria de ‘ouro azul’ no Século 21 porque, no atual modelo de consumo, o estoque já não é suficiente. Portanto, passamos a tratar a água como mercadoria, regulando seu uso. Em todo o mundo surgem mecanismos para estabelecer limites e valores para o acesso à água, como mostram os resultados das últimas reuniões mundiais sobre o tema: o documento final do 3º Fórum Mundial da Água, realizado no Japão, em 2003, contém uma extensa lista de recomendações quanto ao gerenciamento dos recursos, com um solitário e lacônico artigo de 4 linhas sobre a conservação da biodiversidade.